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A memória na vida e na psicoterapia

  • Foto do escritor: Gabriela Gibim
    Gabriela Gibim
  • 15 de jul.
  • 5 min de leitura

A imagem da psicoterapia enquanto ato de acessar memórias como se acessa um baú de tesouros no fundo de um oceano, ou um baú de fotos e pertences no sótão de uma casa, é uma forma recorrente de ilustrar como ocorre um processo psicoterapêutico.

bordado em foto
bordado em foto

Ainda que a motivação da maioria das pessoas que inicia a psicoterapia seja lidar com suas questões e conflitos atuais, não é de se estranhar que em um processo terapêutico seja importante contextualizar as questões trazidas a partir de seu início, que muitas vezes estão em um passado mais ou menos distante.


Como o objetivo deste texto é conversarmos sobre a memória, vale dizer que esse exercício de contextualizar talvez seja a forma mais inicial de pensar qual é o papel da memória em processo terapêutico, mas seguramente não é o único. Para além do lembrar - como olhar uma fotografia -  narrar e ressignificar elementos da própria história é um modo ativo de lidar com o sofrimento psíquico e parte importante de um processo terapêutico.


Por isso, se aprofundar e refletir um pouco mais sobre a memória, esse atributo tão importante (e interessante!) da nossa humanidade, pode ser positivamente transformador. Esse texto é uma forma de se aproximar desse tema, que provavelmente não está na dita “ordem do dia”, já que é muito comum  se dar menos importância ao passado quando se está muito envolvido em problemas atuais.


Tanto que é mais comum que as questões relativas à memória ganhem espaço quando envolvem perdas e prejuízos que sejam evidentemente práticos, como quando nos esquecemos das chaves de casa, quando não conseguimos memorizar o conteúdo de uma prova, etc., ainda que a memória seja importante por muitos outros motivos.


  Isso me faz lembrar de um texto da Noemi Jaffe sobre a morte de sua mãe em “Lili novela de um luto”. Enquanto ela discorre sobre como a imagem de sua mãe vai se transformando na memória à sua revelia, a escritora faz uma ressalva sobre como abordamos a memória na nossa sociedade: 


“Como se também a memória fosse um escritório burocrático onde se enfileiram prioridades. O ainda-não prevalece sobre o já-foi e os deveres relegam a dor e a lembrança, sentimentos inúteis, aos cantos da memória.

A vida aqui fora é uma metáfora da memória - arquivar, salvar, espaço para acúmulo, limpeza das sobras, hierarquização - e também a memória passa a ser uma metáfora dessa vida, funcionando ambas por osmose e imitação. Em outro modo de vida, com outra experiência do tempo, certamente também a memória funciona de modo diferente.”


Aí está, talvez, um dos pontos mais sensíveis sobre a memória, ela está suscetível ao que podemos/conseguimos fazer dela e com ela. A memória não é somente produto do que um cérebro é capaz de fazer, mas é também uma produção social! Nos relacionamos com a memória e damos importância à determinadas qualidades suas, seguindo um certo roteiro socialmente apreendido. Contudo, se nós apenas a colocarmos a serviço das soluções práticas cotidianas, isso pode ser bastante limitador.


Na contra-mão da praticidade, é provável que o luto seja um dos momentos de maior ruptura e questionamento desses limites práticos para a memória, porque quando o vivenciamos, querermos que o tempo presente se paralise, e nos voltamos para o passado desejosos de nos ocuparmos dele, querendo reter a voz, o cheiro e as histórias contadas por alguém querido que se foi.


Mas a memória não é tão certeira ao responder aos nossos interesses, longe disso. Estar desejoso de lembrar-se de algo não é garantia de que será lembrado, ainda que valha o esforço, ainda que na busca de lembrar sejam criadas coisas incríveis como um livro como o da Noemi.


Voltando àquela alegoria do baú de memórias, ela possui o mérito de ilustrar o movimento de buscar memórias que ficaram guardadas ou esquecidas, que é algo que estamos cada vez mais desconectados. Contudo, em se tratando da relação com a memória, algo tão vívido e moldado socialmente, acho que podemos acrescentar alguma complexidade, que é o fato de que, em termos de memória, é improvável que aquilo que encontramos seja exatamente a mesma “coisa” que outrora guardamos.


Em um livro de umas das maiores pesquisadoras brasileiras que se dedicou ao tema da memória, a Ecléa Bosi, a autora retoma os estudos de outros importantes pesquisadores a respeito desse tema, dentre eles Willian Stern que faz uma síntese bastante interessante, de que a memória pode ser tanto conservação quanto elaboração do passado, reforçando o caráter plástico com que o passado se insere no universo pessoal de alguém, nas palavras dele “a função da lembrança é conservar o passado do indivíduo na forma que é mais apropriada a ele”.


Sem que tenhamos um controle consciente, podemos lembrar ou esquecer partes da nossa história, segundo aquilo que nos parece mais apropriado. Isso significa que nossa memória não é apenas algo que acessamos, como em um arquivo, mas também algo que criamos distorcendo, esquecendo, deslocando personagens e histórias. 


  Ainda que a própria psicanálise tenha contribuído para que se difundisse essa imagem da memória enquanto algo preservado que pode ser redescoberto (a partir da comparação do psicanalista com o arqueólogo, ou das próprias descrições de intervenções de Freud, como no caso do homem dos lobos), ela também contribuiu - e muito - para que a compreendêssemos a memória como algo passível de falhas (como nas memórias encobridoras) e de transformações.


Se fossemos tentar manter a analogia com o baú de fotos, é como se em um processo terapêutico ocorresse a possibilidade de que a cada vez que esse baú fosse aberto, algo nessa foto pudesse ser acrescentado ou retirado à luz de nossas novas compreensões, que nos fazem perceber nossa própria história de forma mais complexa. Seguindo na mesma linha, não haveria garantias de serem sempre tesouros os objetos encontrados no fundo do oceano. 


Nesse sentido, num processo terapêutico, ao menos aqueles apoiados na psicanálise, trata-se de encontrar memórias esquecidas, sem reduzi-las aos fatos. Ainda que eles existam e muitas vezes sejam inquestionáveis, lembrar não é o objetivo ou fim de um processo. Trata-se de um trabalho sobre memória, que envolve lembrar, sonhar, devanear, supor, intuir de modo que seja possível criar sua própria forma de narrar o acontecido, que inclua, por exemplo, o contraditório, os afetos reprimidos e outras novas percepções, que puderam ser adquiridas.


Se você chegou até aqui e continua a ter interesse por esse tema da memória, a literatura está cheia de boas companhias, como “Lili novela de um luto” da Noemi Jaffe que citei acima, “O menino no espelho” do Fernando Sabino, em que ele mergulha em um mundo de fantasias infantis e “Invenção e Memória” da Lygia Fagundes Teles, com contos que fazem jus a esse título. 


Para quem tem pretensões de estudos a esse respeito, “o tempo vivo da memória” da Ecléa Bosi é uma boa dica, teoria escrita de forma envolvente, poética.

Depois dessas dicas vou ficando por aqui, espero ter ajudado um pouco nesse processo de olhar para as próprias memórias!



Fique à vontade para escrever nos comentários as suas impressões. Cada olhar e sentimento compartilhado alarga, um pouco mais, as formas de se viver a vida!



 
 
 

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