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Que mundo é esse que nos paralisa?

  • Foto do escritor: Gabriela Gibim
    Gabriela Gibim
  • 29 de jun. de 2020
  • 3 min de leitura

Quando digo que as limitações que existem naquilo que expressamos ou deixamos de expressar tem a ver com o mundo que nos cerca, que mundo é esse?



Mundo é uma palavra grandiosa, a meu ver. Diz de um conjunto de elementos que se relacionam entre si ao ponto de se tornar um todo distinguível e de criar fronteiras entre o que faz e do que não faz parte do tal “mundo”. Enquanto escrevo, essa palavra me lembra outras: “habitar” e “realidade”.


Um mundo pode ser tudo o que estiver contido no planeta, por exemplo, onde vivem organismos, incluindo o ser humano que se diferencia dos demais mamíferos e de outros animais por “ser dotado de telencéfalo altamente desenvolvidos e polegar opositor”, como o icônico documentário Ilha das flores nos diz. Nós, humanos, vivemos em um mundo. Nós, humanos, somos parte criadora desse mundo (um mundo só?).


Criamos as noções de “mundo” e de “indivíduo” e essa incansável prática de significar e distinguir, catalogar e classificar... A humanidade criou palavras e modos de compreender as coisas, mas não há uma universalidade, de modo que para uma determinada cultura, as palavras criadas por outra podem não significar nada conhecido ou, no caso de uma mesma cultura em diferentes momentos históricos, as palavras podem ganhar outros sentidos.


Vou aqui dizer sobre um jeito de pensar a relação de um ser humaninho com o mundo que o cerca, mas estou certa de que haverá mais um cem números de outras formas de narrar sobre essa relação. Essa é uma feliz constatação, afinal de contas, a forma como a nossa sociedade se pensa e se reproduz é adoecida e nos adoece, e é a essa forma que me refiro quando relaciono o mundo que nos cerca às limitações de nossas expressões vitais.


Quando digo que as limitações daquilo que expressamos estão relacionadas com o mundo que nos cerca, estou dizendo sobre as estruturas sociais em que vivemos, que se sustentam a partir de uma série de regras coercitivas que incidem sobre a nossa corporeidade.


Reich, um psicanalista Austro-Húngaro, dedicou-se ao tema da relação entre o adoecimento psíquico e a forma de organização da cultura patriarcal. Segundo o pensamento reichano, na cultura patriarcal em que estamos imersos, que valoriza a verticalidade e a concentração do poder, a perpetuação de suas estruturas ocorre no bojo da família nuclear, que, desde muito cedo imprime sobre o corpo infantil, através de suas práticas pedagógicas, a obediência e a docilidade, intervindo sobre as manifestações de sua vitalidade.


Hélia Borges, estudiosa desse autor, faz uma síntese sobre o pensamento de Reich:


“Segundo Reich, o autoritarismo, em sua verticalidade característica, é resultante do caos sexual a que a humanidade tem sido submetida. O medo irracional à vida daí recorrente, o medo ao prazer e a impotência conduzem à estagnação da motilidade vital dos organismos, gerando seres dóceis, obedientes, constituindo a base psicológica das ditaduras e permitindo que elas se justifiquem” [1]


Essa noção de autoridade e de hierarquia, de concentração do poder nos é tão comum que aquilo que sofremos ao reproduzi-lo, é em grande medida tido por nós como “necessário” e “normal”. É normal porque “é assim na casa de todo mundo”, digamos, ou é necessário porque se não houvesse essas figuras, que concentram o poder, estaríamos em uma espécie de barbárie... Afinal – pensamos – quanta desordem haveria se desobedecêssemos às autoridades? Dos pais, dos chefes do trabalho, dos chefes do governo.


Hélia nos dá elementos para construir a compreensão crítica sobre essa forma verticalizada, que nos coloca na posição de idealizarmos o lugar onde o poder se concentra e, ao mesmo tempo, sermos oprimidos por ele. De uma forma bem imagética, é assim que estamos: com a percepção fechada, sustentando “um olhar paralisado em um único sentido: aquele evocado pela autoridade representada na figura parental”.


Nessa sociedade na qual somos parte, agimos guiados pelo medo e pelo sentimento de que algo nos falta. É difícil acreditar que "saia algo de bom" disso. Também, é difícil - impossível - considerar que bastará que individualmente busquemos outro caminho, embora, acredito que seja o nosso desejo, intimo, de que a nossa vida seja mais plena (inteira, conectada, potente), que nos mobilize.


Por fim, a intenção com esse texto foi ser mais explicativa, mas ele é, também, um lembrete, que juntos com os outros textos, vou deixando pela web, para que a gente se lembre de permitir sentir e agir com vitalidade, com as forças inventivas da vida, que a gente se recorde que podemos criar e sustentar outras formas de viver, que não a já preestabelecida.



[1] Esse trecho foi retirado do livro “Clínica contemporânea e o abismo do sentido”, de 2019, da Hélia Borges, página 35. O outro trecho , que fala sobre o olhar paralisado também foi retirado de lá, página 34. Vale dizer, que esse livro é maravilhoso para quem gosta do tema da clínica e da corporeidade, é inspirador!

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